“é esse aqui, com essa bundinha empinada. rapaz é elber, é elbermario!”

Imagem: Elbermario, aos sete anos. Acervo pessoal.

“Eu nasci no Candeal em 1982 e comecei a ter contato com a música com 7 anos de idade, em uma banda composta por sete meninos era eu, Jair, Sinho, Marquinhos, Paulinho, tinha mais dois, era a Banda Arrastão, banda de lata, a minha primeira conexão com a música foi a partir daí. A gente tinha a ideia de copiar mesmo o Vai Quem Vem porque era o que a gente vivia no bairro.

Eu já tinha uma relação muito forte com Brown, porque eu andava muito com o irmão dele, Marquinhos, e antes dele comprar a área do Guetho, o galpão da Timbalada era na casa rosa (da família de Brown), e Sinho era o mais magrinho e tinha um buraco que ele entrava e abria a porta pra gente tocar. A gente entrava, abria tudo, tinha aqueles butijões cheios de lanche, de sanduíche, cheio de refrigerante, a gente comia.

A gente não tinha condições de ter instrumento. Na época, a OAS estava começando a construir a Cidade Jardim. Os tratores derrubaram a mata pra levantar os prédios e começaram a chegar as latas de tinta, as gambiarras, etc. A única forma da gente ter acesso a algum instrumento era roubando as latas vazias. A gente era os ladrões, mas era pra fazer música.

A gente ia em todas as sorveterias ver se as latas já estavam vazias, porque as latas de sorvete eram um som da porra, e dos baldes daquelas altos a gente fazia as baquetas de fibra, porque a gente não tinha condições de comprar baquetas. E assim a gente bolou a banda Arrastão.  A gente tocava muito na casa de Paulinho era muita gente, tinha aquela massa de percussionistas, na verdade. Era até na época daquela música Batuque que Daniela gravou: … é um retrato fiel, é uma historinha de amor/ o reggae me balançou…

Bem, a gente roubava lata, pedia baldes, pegava gambiarra, tábuas e corria dos caras que davam carreira na gente. A gente fez uma cabana, o nome era Cabana Ninja, no fundo da casa de Jair que era o galpão da banda Arrastão e onde a gente começou a namorar com as meninas, ó que massa!

Brown tava fazendo o Vai Quem Vem e quem tocava eram meus tios, eles foram os primeiros músicos do Vai Quem Vem, Leninho, Chico e Zeca, que tocava surdo junto com Boghan. Foi aí que eu tive uma ligação com os instrumentos mesmo, com o surdo-virado, que eu sou apaixonado. Vai Quem Vem tinha tamborim, surdo- virado, ainda não tinha timbau, tinha timbales que Brown botava na frente, ou tocava com ele, Brown baixava os timbales porque eu era pequeno. Eu tenho até uma foto, os câmeras filmando eu com o short lá em cima do umbigo, a bunda ainda era pequenininha, tava começando a formar.

Aí a gente falou com Brown: a gente quer fazer uma banda. Ele perguntou: Que banda vocês querem fazer? A gente já era bem esperto porque quando você convive na comunidade, mesmo sem tá fazendo música, você capta, você vive com aquilo o tempo inteiro, é como a África, aquilo vira looping em sua cabeça, fica no sangue. Aí Brown falou: tá, eu vou apadrinhar! e já que vocês tocam lata, eu vou botar La(c)tomia. E perguntou: quem é o maestro? Esse aqui, Jair é o maestro.

Naquela época, que a música beija flor estourou, a gente ficava louco porque quando os caras vinham com os instrumentos a gente queria pegar, a gente vinha lá do galpão, inclusive quem tomava conta do galpão era o pai de Lucas, Ziriguidum, tio de Danilo, ele que era responsável. Carro não entrava no Candeal aí a gente ia, pegava os instrumentos na mão dos caras e levava até a Cidade Jardim. A gente pegava só pra ter contato, sentir a energia do instrumento.

Nessa época, Brown só tinha um tênis da Reebok , ele usava o tempo inteiro e todo mundo queria aquele tênis. É muita história emendada, por exemplo, foi ele que trouxe essa coisa da vídeo aula, essas coisas africanas, foi ele que proporcionou isso pra todo mundo. Isso tudo é referência de Brown, do que a gente vai falar, ele é o pioneiro, Brown é f*! Se não fosse ele quem seríamos nós? Enfim, tem que bater palma e agradecer muito a ele.

Jair já tinha aquela coisa de líder, a gente vivia na casa dele, comia lá, colhia carambola, e o pai de Jair tinha um império, ali onde é o posto médico até lá embaixo, tinha muito porco, a gente fazia campeonato de porco. Infância boa, maravilhosa! Quando o pai de Jair faleceu, a gente começou a ensaiar dentro da venda, que vendia só pinga e amendoim, aí foi que virou sede da Lactomia.

Na Lactomia, a gente começou a construir os instrumentos. A gente ia pro ferro velho da Cidade Baixa, e reciclava o que achava. Todos os instrumentos foi a gente que construiu, eram horas e horas lixando. Denilson era o serralheiro, ele fazia os tripés, a bateria, tudo, era um cara muito responsável. E cada um começou a se identificar com um instrumento.

O meu instrumento era uma descarga de carro, eu queria puxar o som pro cobell, uma coisa mais aguda, mais metal, na verdade era uma mistura de peças de geladeira e de carro (mola, pivô, mangão), tudo que existe no carro está ali transformado em som. Os carros velhos se tornaram instrumentos novos. Foi quando rolou a primeira viagem pra Itália, eu tava com 13 anos, foi no ano 2000 e essa viagem foi pela Pracatum e UNICEF. Essa história já tem 30 anos.

Eu era muito abusado, muito moleque e era um dos melhores bacuristas que tinha na banda. Um dia, veio Gilmelândia da banda Beijo, conhecer a gente. Eu cheguei atrasado, bati na porta e nada… Eu tô ouvindo todo mundo tocando lá dentro, aí chegou Adriano, a porta abriu, eu entrei e tinha um último instrumento lá atrás, eu sentei. Gilmelândia olhando todos os instrumentos, era instrumento pra caramba e aí no final quando ela me viu falou: é esse aqui, com essa bundinha empinada. Rapaz! É Elber, é Elber!

Aí foi minha saída da Lactomia e já fazendo a Hip Hop Roots, inclusive com o apoio da Pracatum que cedeu espaço pra fazer o laboratório de surdo-virado. Era eu, Sinho, Marquinhos, Paulinho, Bujão, Dedé, Bife, Zidane, Pá, Furunga, Felipe e Daniela Aguiar. Aí foi que Brown viu e chamou a gente pra fazer o Rock in Rio. Depois chegou Felipe pra dirigir, porque a gente sempre teve essa coisa de recepção. Por isso que o Candeal é assim muito rico, porque vinha Rick Martin, vinha não sei quem e a gente tava lá recepcionando a galera, tava lá tocando e era muito natural receber com os tambores. Os caras piravam, queriam levar a gente e Brown nunca deixava. Eu que fui muito ousado de sair e tocar a convite de outros artistas, eu saí da banda de Brown duas vezes, e fui chamado de novo.

Eu comecei a viajar com Brown, Ivanna Soutto era a empresária e Janine a produtora, a gente fez a turnê do disco Bahia do Mundo, mito e verdade, foi quando descobri o mundo (Itália, Suíça, Montreux, etc.). A partir daí foi massa, comecei a estudar de verdade, cada país que eu chegava eu comprava um instrumento, ia descobrindo. Isso foi em 2001, quando Brown teve sua primeira música, Crendice, a ir pra novela da Globo, e tudo foi caminhando.

Eu até me emociono quando lembro isso aí. Eu falo sempre, a gente tem que viver o presente, o futuro a deus pertence, a gente não pode ficar vivendo de passado, mas é importante pegar coisas do passado pra se fortalecer e fazer o presente. Lembro que quem me levou pro parque a primeira vez foi Brown, de kombi. Brown encheu a kombi de crianças e levou pro parque eu nunca vou esquecer isso na minha vida.

Roda de Timbau

São essas coisas que a gente tenta passar na Roda de Timbau. O que a gente faz hoje na Roda é pra dar seguimento a essas coisas todas, uma ideia de Rian Mourthé e Gaby Silva, que me convidaram pra fazer esse projeto de música na rua. Se eu pudesse fazer mais, eu fazia, porque eu vim dessa coisa, entendeu? Então a gente tem que retribuir. Eu faço workshop online para vários percussionistas do mundo, eles são loucos pelo Candeal. Os ritmos têm uma energia incrível, tem suingue, a coisa de dançar, de se expressar com o corpo, com o tambor.

A Roda de Timbau está sendo muito importante pra mim e pra todos. Essa coisa da educação, que a gente se realize, que a música leve pra lugares que a gente nem imagina, que alimente o ser humano, que dê coragem. Então a Roda é essa amizade, é educar, é minha missão. Fizeram por mim, agora eu tenho que fazer pelos demais, sem fins lucrativos, o que vale é a história. Meu plano pra Roda de Timbau é pegar um ônibus e fazer uma turnê por outras cidades e passar essa mensagem em outras comunidades. A gente tem obrigação de passar. Tem que arrumar uma maneira de sustentar. Tudo que eu posto, eu boto lá #Roda de Timbau do Candeal.

A Roda de Timbau é pra trazer a união. Tem tanta gente ali tocando, ali tem todos os bairros, a gente tá quebrando essa barreira que o cara lá do Engenho Velho, da Liberdade, não pode tocar, todo mundo pode. A Roda de Timbau é pra isso mesmo, é pra trazer a coletividade. Vem gente do Bairro da Paz, Lauro de Freitas, Pirajá, pega um ônibus, a gente guarda os timbaus, eu guardo aqui em casa. As pessoas gostam daquela energia maravilhosa, aquela energia purifica. Não tem disputa, meu cenário musical é paz”.

Elbermario Rodrigues Barbosa, percussionista, educador musical. Foi um dos primeiros alunos da Escola Pracatum e participou do projeto experimental – Encandeando o Candeal, que deu origem à pedagogia da Escola. In depoimento ao blog em 26 de junho 2020