“os instrumentos eram improvisados, baldes, bacias, tampa de panela e atabule”, carla fabianny

Imagem: Carla Fabianny. Acervo pessoal.

 “Cursava licenciatura em dança na UFBA e fazia alguns trabalhos em São Paulo e, quando do meu retorno para Salvador, tive o prazer de cantar com o  Muzenza em pleno carnaval. Encontrei Brown e ele falou: Carla, eu tenho um trabalho que idealizei, a Bolacha Maria. Estou com muitas crianças e adolescentes no Candeal que frequentam a Fonte do Boi e, como você sabe, as coisas estão sempre começando e recomeçando. Eu disse que estava percebendo muitas artes por ali, inclusive da parte dele quanto a articulação do tambor, do ritmo e do corpo, oportunidade em que Brown me perguntou se eu não poderia educar esses jovens, aliar os meus conhecimentos para atuar no projeto, frequentando o Candeal.

Iniciei os ensaios, conversava com os compositores e avaliava o que eles tinham criado. Jair (Rezende) era pequenininho e me entregava as letras de músicas da Lactomia e eu comecei a datilografar e ordenar o que era criado por eles e mostrava pra Brown que me cedeu alguns instrumentos de percussão. Os ensaios eram feitos na rua, na OAS, embaixo da mangueira. Não tinha esses prédios de hoje, só tinha um bate-estaca que os construtores utilizavam e que servia como metrônomo em nossos ensaios.

Em um encontro, Brown propôs iniciar os estudos homenageando o primeiro grupo feminino de Salvador, o Afoxé Filhas de Oxum. Com a indicação de Brown, selecionamos o ijexá como base percussiva. A gente iniciava os ensaios com uma oração à Maria. Como acompanhamento, tocávamos o ritmo do ijexá com movimentos e vozes, uma espécie de iniciação e aquecimento, uma maneira encontrada para buscar a produção de conhecimento, estimulando a concentração, percepção, o ritmo, o gingado, o trabalho em grupo, a disciplina, entre outras aptidões.

Para Brown, a Bolacha Maria era uma forma de dar um tapa na cara do preconceito. A mulher tem a percussão por tradição desde a antiguidade. O livro História Concisa da Dança nos revelou que a mulher era a percussionista e o homem ritmista. No Egito antigo, os homens marcavam o ritmo na construção das pirâmides, enquanto elas tocavam nas panelas para se comunicar, chamando-os para comer. Cientes dessa tradição  e,  de certa forma, revoltadas com tal ordem  de que tocar tambor é só para os homens, o movimento feminino Bolacha Maria  era compreendido como um ponto de encontro divertido no que diz respeito à viabilização da mulher percussionista.

Inteligência musical

Os instrumentos eram improvisados, baldes, bacias, tampa de panela e Brown criou o atabule (um instrumento ressignificado a partir do atabaque para a forma de bule). Decorávamos a partir das coisas que as meninas traziam: bonecas, saboneteiras, sutiã, anágua, um ursinho para pendurar. E assim, íamos garantindo o desenvolvimento na  educação artística de maneira espontânea, preparando-as para o exercício da cidadania e já pensando em qualificá-las para o mercado de trabalho. O objetivo era estimular a imaginação e exercitar a criatividade, despertar nessas meninas uma forma de se organizar de maneira coletiva.

Contávamos com Careca que se fazia presente o tempo todo e ensinou a clave do samba e do afoxé, que era a base. Brown fazia as levadas como Pão com Batom com BA (significado = Mãe Bá) e as meninas, com essas 3 claves, faziam as composições delas.  Toda semana, segundas e terças, fazíamos  os ensaios. O que Brown manifestava como propósito,  nessa época,  era que Mônica Millet, que é neta de Mãe Menininha, fosse a diretora percussiva, ela chegou a realizar um arrastão conosco em uma entrevista para revista Isto É.

Os ensaios eram feitos ao pé da mangueira e também na frente da casa de Hatinely, ao lado de onde hoje é a Pracatum. Foi o momento mais incrível da vida de todas nós. Acho que foi um momento de despertar o desenvolvimento artístico e técnico nessas meninas e me trazer pra área da arte-educação, o que significou um despertar muito valoroso. Porque hoje temos Leninha e Ratinha, duas das maiores percussionistas do Brasil, temos também, Priscila Levita, Jujuba, Hatinely, Andrea e Ana Lívia, excelentes compositoras baianas. Depois que acabou a Bolacha Maria elas continuam a desenvolver trabalhos solos dentro ou fora da música, nacional e internacionalmente.

Tudo isso foi desenvolvido num processo muito curto. Então ia ter a matéria para o Jornal Nacional, oportunidade de apresentar o atabule, demandando desenvolver figurino, fazer oficina de cabelo e nós e seguíamos tentando educar dessa forma, a partir do que era necessário no momento. Tudo era itinerante, não tinha uma sede, não tinha uma escola. A resolução se apresentava, a cada evento:  vem Caminhada Axé. Como faremos o figurino? Aí vieram as saias cumpridas de lavadeira. Os homens já queriam participar e Brown sugeriu que eles usassem saia com trouxa na cabeça.

Era divertido porque a gente desenvolvia a imaginação através de habilidades artísticas e técnicas, no momento que a gente estava apresentando, porque não era nada com muita ordenação como você tem agora, era, de fato, espontâneo. O importante era saber o que fazer com seu instrumento. O que vale não é o quanto se toca, mas como se toca. A Bolacha Maria começou a ser divulgada em 1993, sendo realizadas duas apresentações: Caminhada Axé e no Carnaval, todas duas com Baby Consuelo, que nos acompanhou. Em 1994 foi quando Lui Rabelo assumiu a direção musical.

Inteligência espacial

Elas não usavam timbau, elas usavam atabule e a gente tinha que ensinar como se movimentar, como se posicionar e se deslocar com ele. Eu observei que na realidade elas tinham que articular o tambor, o ritmo e o movimento corporal na mesma pulsação, tinha que tocar, tinha que tirar o som e esse movimento tinha de ser genuíno. Então o que eu desenvolvi na parte coreográfica foram os movimentos direcionais das partes do corpo para que elas pudessem quando tivessem uma pausa, mover um ombro, mexer a cabeça ou fazer ondulação com o tronco.

Elas já tinham esses movimentos direcionais e quando pegavam o instrumento e tinham que fazer um deslocamento, tinha que ser espontâneo, senão elas ficariam presas. Eu observava que nos arrastões as meninas ficavam amontoadas. Então era preciso fazer barreira, fazer fila, intercalar, 4 pra frente e 3 atrás pra todo mundo aparecer, tinha uma ordenação coreográfica. Quando chegava a televisão ninguém ficava na frente querendo aparecer, porque sabiam que seriam vistas porque não estavam uma na frente da outra. Tinha uma inteligência espacial que funcionava bastante.

Cici era uma menina especial e todo dia ela estava no ensaio querendo tocar. A gente dava a lista da chamada. Aquilo desenvolveu a inteligência linguística, espacial dela. Todo mundo participava na chuva, no sol, na mangueira. Estávamos todas juntas isso é que importava. Nessa época, eu tinha 28 anos, meu sonho era ser professora da Pracatum. Aprendi vendo a arte dessas crianças, desses jovens.

Aprendi muito no Candeal e buscava apoio promovendo encontros com Careca, com Mônica Millet, com Fialuna, Lui Rabello, o que foi fantástico. No ensaio, Fialuna começou a andar, pular, correr, traçando desenhos espaciais, em linha, reta, sinuosa, tracejada, semicírculo, círculo e ele ia cantando, aê, aô e nós tocávamos, dançando e cantando. Já Mônica Millet falou sobre Ijexá, sobre sua história no cenário afro-brasileiro. Lui Rabello teve um encontro no estúdio, onde falou sobre sua história de vida e tocou para elas. Além disso, desenvolvemos uma parceria com a Academia Água  e Vida de Mônica no Candeal de Cima, onde foi disponibilizado uma sala  grande para ministrarmos aulas de dança, de teatro e hidroginástica e isso era um outro mundo para as meninas.

Tanto que hoje tem produtora cultural, percussionista, compositora, tem várias profissões que elas desenvolveram a partir dessa inserção na Bolacha Maria. Eu sempre achei que deu certo por isso. Só essa inserção e o que ela fez na vida de cada uma, até na minha vida, pois hoje algumas dessas observações, fazem parte do meu trabalho acadêmico e também, ajudou no desenvolvimento de habilidades, de cada uma delas. Hoje, tenho muito orgulho quando vejo estas mulheres se apresentando, se posicionando. É emocionante, nós estamos vivendo daquilo que foi despertado em nós, naquela época sem nenhuma estrutura, mas com muita arte, todo mundo respirava arte e criação o tempo todo, era muito bom.

Mas até hoje quando tem mulher na percussão existe um pouco de preconceito. Olham pra você assim com uma certa dúvida, que não vai conseguir, que não vai fazer bem, é um preconceito realmente. Ainda mais com a mulher negra, é difícil abrir espaço. Mas a gente não conversava sobre racismo nem religiosidade, a gente falava de habilidades numa prática diária, pois não é uma coisa fácil. A gente pesquisava a mulher no carnaval, a gente pesquisava estética, tipo de cabelo, qual o figurino, quais os temas das composições, que ritmos queremos fazer, qual o movimento corporal que cada uma preferia.

Nossa preocupação ia desde estarem estudando na escola regular até uma eventual entrevista: O que sou como artista? O que é sucesso pra você? Não pode achar que aparecer na televisão é sucesso. Sucesso é estudar, respeitar o colega, ser uma boa filha, saber trabalhar no coletivo. Tudo que fazíamos era importante. Uma apresentação de teatro no Pelourinho que nós fizemos, por exemplo, o texto não era uma beleza, mas já mudou o comportamento delas. Já se vestiam, se penteavam com mais capricho, não era só shortinho, acordar e ir pra rua, já se arrumavam pra sair.

Brown sempre foi aquele que educa, muito criativo, trazia as artes como alternativa e transformou Candeal em um caldeirão de conhecimento. E quem viveu essa época não tem como esquecer, porque a necessidade trouxe vários caminhos para todos nós. Então você olhava para uma janela e estava alguém cantando. A cada segundo, a cada minuto era mostrado o trabalho de alguém. O que nascia ali era uma coisa bem singular mesmo, não tinha como Ratinha e Leninha não serem grandes percussionistas, pelo que elas têm de bagagem. O que elas trazem é muito grande, aquele contato com Brown, com Pintado do Bongô, com Fialuna, com Leo Bit Bit, com Boghan, com Monica Millet, com Lui  Rabello, com Careca, é muita e pura história”.

Carla Fabianny, constrói tambores adaptados ao corpo para dançar, tocar e cantar. É formada em dança, em percussão erudita, com Pós-graduação em Arte-educação, Psicopedagogia, Docência a Nível Superior e Doutorado em Educação musical.

SALES, Carla Fabianny Ramos. O Tambor como extensão do “Ser-corpo”: Artes musicais, plásticas e cênicas como fundamento para a busca de uma autonomia pessoal e profissional. 2014. Dissertação apresentada no Doutorado em Educação Musical, Université Libre Des Sciences De L’ Homme De Paris, 2014.

Em depoimento ao blog em junho de 2020 .