a percussão do candeal no tempo do barro – a transmissão de conhecimento no movimento vai quem vem, segundo o percussionista leo bit bit

Imagem: Leo Bit Bit (pandeiro), Natalício e Gilvan (berimbau), no Candeal, sem data. Acervo pessoal Leo Bit Bit.

“Na época (1983-84) era eu, Boghan, Denilson e mais uns três. Era umas seis a sete pessoas nesse grupinho que a gente fez, o grupo de samba Alameda. Aí Carlinhos chamou pra fazer um laboratório e começou a ensaiar com a gente, a passar as coisas que ele sabia: como sentar pra tocar o instrumento, a forma certa de tocar. Isso foi muito importante”. http://carlinhos-brown-e-vai-quem-vem-o-levante-cultural-do-candeal/

Carlinhos tinha uns vinte e poucos anos, o cara já era mestre, ele tinha uma sensibilidade de passar as coisas, que a gente ficava assim ó. Às vezes, a gente pensava: pô, o cara é maluco, mas não, ele já tinha um filme na cabeça dele, ele já sabia aonde ele queria chegar e chegou.

Ensaio mudo

“Carlinhos passava muitos exercícios que a gente fazia no chão, no banco. Como tirar o som do instrumento, mas sem instrumento, no piso de casa, tampa de panela a gente pegava, mas ele passava muito no chão da casa dele. Isso faz um efeito tão grande que a gente não imagina. Às vezes, acontecia ensaio de verdade, todo mundo fazendo no chão.

A gente fazia o papa-mama que é um exercício de coordenação pra soltar a munheca e ganhar velocidade, pra distribuir as notas nos instrumentos de percussão, isso ajuda muito a fazer as divisões das bases, pra fazer levadas e solos e a gente fazia isso no chão.

Brown sempre falava isso: não tem instrumento, faça a levada na boca, no chão. Era uma disciplina tão bacana que quando a gente chegava no instrumento a gente já sabia o que fazer, como conduzir de uma forma sem muita agressão. Porque a música tem começo, meio e fim e a gente foi conduzido dessa forma.

O nosso mestre, Carlinhos, ele passava muito as informações de como se adaptar ao instrumento, como usar de uma forma tranquila, sem muita ansiedade. Você começa pequeno e vai crescendo, saber conduzir a música, a hora de subir, a hora de descer e hoje eu não vejo isso mais. Os meninos tocam muito alto e muito forte, mas eles vão aprender isso futuramente. Então isso era muito passado, essa disciplina de como conduzir o instrumento, a música, o refrão.

Carlinhos passava muito isso pra gente de respeitar as claves, contagem também, ele ensinava a entrada, o tempo que você tá. Vai Quem Vem tem muita coisa no contratempo. As claves começavam pelo repique, pela pele e pelo aro, a gente usava muito o aro dos instrumentos, isso é muito importante para a sonoridade. O repique é o mesmo formato da bacurinha, porem ele é maior, o som é mais grave e eu acho mais definido. A bacurinha tem som de lata, é aguda. É da gente aqui (foi criada por Carlinhos Brown), mas no começo a gente usava o repique (que é usado pelos blocos afro e por escolas de samba).

A gente sempre foi muito coletivo, a gente ia pra casa, tirava a dúvida do outro. Afinações é fundamental, o corpo do instrumento é outra sonoridade. O surdo naquela época era feito de zinco e o zinco tem um som da zorra. E as peles de hoje não são as mesmas de antigamente. Quer ver outra coisa: baqueta, baqueta é muito importante. Eu lembro que naquela época, a gente tocava com vime. É outro som, você usar o vime no repique, é bonito e gostoso. O timbau era de madeira, aro de ferro, você lascava a mão toda”.

Repertórios

“A gente ouvia muito África, Dudu Rose (percussionista senegalês), Carlinhos trazia muitos discos de fora. Só quem tinha acesso a essas coisas é quem viajava. A gente ouvia muito Luis Kalaff (violonista dominicano), aquela onda de merengue. Foi na época que Brown fez uns arranjos em cima de Kalaff como aquela: “O merengue fica bom quando tem o macarrão na panela de feijão”. Ele ouvia muito Changuito (Cuba), Tito Puente (NYC-Porto Rico). Carlinhos trazia das viagens discos, videos, a gente assistia muita fita de vídeo que ele trazia.

O que ele queria passar era como conduzir o instrumento cubano, africano, ele falava a origem do instrumento pra gente, falava da percussão que é infinita, e não se resumia no surdo. Ele trazia essas informações pra gente: olhe como a percussão é ampla! Justamente pra gente não se bitolar em um instrumento, que a gente tinha capacidade de conhecer instrumentos de outros países e isso dependia da vontade e do desempenho. A gente foi muito disciplinado, eu agradeço pra caramba, apesar de não ser acadêmico, aprendemos muitas coisas na naturalidade mesmo”. Leo Bit Bit. In: depoimento gravado na Pracatum em 23.08. 2018.