‘… não é que eu trabalhei aqui, aqui foi onde eu aprendi! o candeal foi a base de tudo…’

 Imagem: Frame do documentário Cara de Cobra in www.tapadecobra.com.

 “Meu nome é Cara de Cobra, muitos aqui me conhecem, sou percussionista nato do Candeal. Comecei a tocar com Carlinhos Brown com 15 anos no movimento Vai Quem Vem. E toda a minha formação rítmica, afro-baiana foi o Candeal que me deu. É minha escola! eu tenho orgulho de ser um percussionista formado na rua. Tudo que eu tenho na minha vida devo primeiramente a Deus, depois a Brown e depois a esse Instrumento aqui (timbau). Hoje eu sou também produtor musical, faço trilha e tudo isso que aconteceu na minha vida tem a ver com isso.

 

Essa Escola aqui é muito importante, porque hoje eu vejo os frutos de tudo isso aqui e os frutos são vocês. Tá passando um filme aqui na minha cabeça. Há 25 anos atrás, a gente tocava aqui em cima, na rua, não tinha essa estrutura, não tinha nada.

 

Brown mostrou a gente a realidade do gueto e a realidade das coisas boas. Eu vivi aqui as coisas difíceis pra começar o projeto e também vivi muitas coisas boas. Há vinte e poucos anos eu tava aqui tocando no meio de 200 homens, Brown olhou pra mim, eu era magrinho, e me disse: ´você vai fazer uma parada comigo´. E eu pensei: que parada é essa? Quando eu vi foi pra gravar o primeiro trabalho dele solo o Alfagamabetizado. Eu e Márcio Victor, imagine!

 

Eu sempre vou citar nomes de percussionistas aqui, porque Brown foi uma grande referência, mas eu também tenho outras referências no Candeal que sou fã. Sou fã de Leo Bit Bit, Boghan, Tripé, Gustavo de Dalva, porque eles foram os primeiros percussionistas a pegar o instrumento, a tocar. Eles e eu foram realmente os caras que Brown pegou na mão pra ensinar.

 

Todo esse movimento que vocês estão vendo aqui hoje começou no Vai Quem Vem. Eu cheguei no Vai Quem Vem, não tocava nada, Brown ali ensinando e eu fui aprendendo. Brown é iluminado, tão iluminado que formou percussionistas que gravaram com Ricky Martin e grandes músicos internacionais, eu sou um dos percussionistas que mais gravo no Brasil. Só pra vocês terem uma ideia, cheguei a gravar mais de 20 artistas do sertanejo, em um ano. Faço trilha pra fora do país e agora gravei com DJ Alok. Então só tenho que agradecer a Deus, a meu pai que me levou pra música e agradecer isso aqui, que foi a base de tudo. 

 

Eu defendo a música baiana como os cubanos defendem a música cubana, e os africanos defendem a música africana. Eu tenho orgulho de ser um tocador de timbau, de ser um tocador de bacurinha e vocês têm que defender isso porque nós temos que defender nossa raiz, porque os grandes festivais que participei na minha vida foi tocando meu timbau, meu surdo e minha bacurinha.

 

Hoje quando eu vejo alguém me chamar de mestre eu fico com vergonha. Eu ainda não me considero um mestre, eu sei que ainda tenho muito o que aprender com 43 anos. Mas o grande segredo de tudo que aprendi foi pé no chão, não adianta você achar que é melhor do que ninguém tocando. Quanto mais você estudar mais você tem que ajudar o outro que não sabe, isso eu aprendi aqui. Na minha época, isso era lei! A gente tinha que ensinar o outro.

 

Vocês aqui estão tendo a oportunidade que eu não tive, na minha época pra aprender algum outro instrumento, a  gente pegava a fita cassete. Era dez dias na casa de um, dez dias na casa de outro. E Brown é que passava essas informações pra gente, então tenham orgulho dessa Escola, abracem a Pracatum e ajudem os outros alunos que chegam aqui pra aprender. Parabéns pra vocês todos.

 

https://www.youtube.com/watch?v=RjqIeb3oUEU

 

Misturando ritmos

 

Em 2016, eu tive uma surpresa do empresário da Contemporânea, Roberto Guariglia disse: Cobra, eu quero fazer um timbau com seu rosto. Eu fiquei um pouco assustado e disse: poxa, o cara que é pra ter o rosto no timbau é Brown. Na verdade, Brown revolucionou o timbau, ele colocou técnicas e bases no timbau que não existiam e quando eu falei isso ele disse: `Mas o que você aprendeu a tocar no Candeal, o que você passa pras pessoas, você tem um jeito de tocar diferente que todo mundo gosta`. E com toda humildade, hoje o timbau Cara de Cobra é um dos timbaus mais vendidos na Europa, no Japão, Estados Unidos e agora tá vendendo em Israel. Então isso é fruto de persistência, de acreditar que a gente pode chegar em algum lugar.

 

Jair (Rezende) também é meu mestre, é um cara que é referência, eu tenho muito respeito. Eu fui tocar no Festival Primitivo BBQ and Music Experience, que são 500 tambores, quando eu cheguei lá fiquei com medo e pensei: rapaz como foi que Jair regeu esses caras aqui ? E todo mundo falando: Cobra faça do seu jeito e foi o momento que eu lembrei do Vai Quem Vem, lembrei das bases e lembrei também das minhas referências: Baldino, Claudio, Sergio Bem-te-Vi, Anizinho.

 

Mas o que eu gosto de fazer tocando percussão é misturar os ritmos, misturar as levadas. Isso foi uma coisa que Brown ensinou a gente: ó tem que misturar timbau com conga, misturar timbau com atabaque. Isso foi uma coisa que nasceu no Candeal. Isso não tinha na música baiana. Eu posso falar que eu comecei a ouvir black music no Candeal. A gente escutava muita coisa do black e do soul, a gente escutava James Brown… rapaz que som doido…. e daqui a pouco Brown fazia um arranjo e já pensava nessas coisas. A percussão baiana teve uma evolução quando Brown colocou a batida do black e do soul nos surdos, no timbau e na bacurinha. Eu mostrei muito isso lá na Espanha, as levadas de funk num surdo e as divisões.

 

Eu quero ensinar a vocês a misturar as coisas, ensinar a vocês como se cria uma levada, vamo nessa?

Bacurinha! 1, 2 3 e….”.

 

Depoimento do músico Cara de Cobra à turma de percussão de Jair Rezende na Escola Pracatum, agosto /18.