“a cena é muito importante, ela se conecta com o som”

Imagem: Gilmar Gomes. Acervo pessoal.

“Meu contato com Candeal veio aos 18 anos quando fui tocar com Daniela Mercury e comecei a conhecer as pessoas do Candeal. Em 1999, eu ia lá…frequentava os ensaios da Timbalada e fui convidado por Carlinhos Brown pra fazer uma turnê de televisão (disco Omelete Man). Foi uma mudança no meu comportamento como músico, porque não era só ser músico. Veio a coisa de escrever música, se pensar como um artista em geral, isso já foi uma influência muito grande do Candeal.

Eu lembro de uma conversa com Brown, eu sou meio tímido, e ele me disse: Você tem que se colocar como artista, me disse que a cena é muito importante e ela se conecta com o som. Foi aí que eu tive esse entendimento do que eu queria ser como percussionista, essa coisa de abrir o leque e testar. Me colocar no palco como artista, isso é coisa de Brown mesmo. Ele é uma referência de um artista na percussão que influenciou uma geração e influencia até hoje. Brown deu orgulho ao percussionista, de querer ser mais e ter mais.

Existia um interesse em ser um educador. E eu segui essa filosofia de estar no palco e me portar como artista e isso é resultado dessa cultura que se instalou lá no Candeal, de se transformar as coisas, transformar os instrumentos, de tocar os 3 surdos, de virar o surdo, de se criar a bacurinha. É uma reinvenção da percussão de Salvador, que até aquela época era muito no Pelourinho e na Liberdade.

A música de Salvador se transformou e a gente pode sentir isso no pagode, que tem a ver também com o Candeal, porque Márcio Victor (integrante da Timbalada) foi uma peça importantíssima na transformação da clave de se tocar o pagode. Eu tive a oportunidade de ver isso nascendo com Márcio, ele transformou o pagode que era tocado com É o Tchan, mudando a clave (a gente tocava junto lá em Daniela) e eu sentia quando a gente tocava nos trios. Ele me apresentou essa coisa nova. Então até com o pagode você tem ainda essa chama que foi do Candeal, nessa época de transformação da percussão de Salvador.

E isso começa com Vai Quem Vem, eu cheguei depois, mas eu acho que essa explosão começa aí. Quando a Timbalada apareceu, que foi aquela coisa na cidade, com a música olha a Timbalada oiá, aquilo foi a surpresa, mas eu acho que vinha de antes, vinha do Vai Quem Vem, que Sérgio Mendes mostrou ao mundo. Vai Quem Vem foi o grande precursor da Timbalada, apresentada ao povo como a música de rua”.

“Somos o novo povo”

“Eu nasci no bairro de São Caetano, em 1978. Comecei a fazer música muito jovem com meu irmão, nós tínhamos 8, 9 anos, mas era coisinha de rua. Nessa época, aconteceu o fato que mais ajudou nesse canal da música. Foi uma mudança, a gente saiu de São Caetano e fomos morar na Liberdade, na rua Alvarenga Peixoto, a rua do Muzenza.

Um certo dia, a banda mirim do Muzenza estava tocando e aí a coisa da percussão se tornou realidade pra mim. Quando eu vi aquilo, as crianças tocando eu já sabia que era aquilo que eu queria fazer.

 

Eu pedi ao mestre da bateria Jorge Gangazumba pra ele pedir aos meus pais pra eu tocar na banda. Ele foi falar com meu pais, porque era necessário o consentimento, pois  o bairro era muito perigoso, tinha muitas gangs. Meu pai deixou e eu fiquei tocando um ano na banda mirim do Muzenza. Nessa época, eu tocava o instrumento mais fácil: marcação (surdão) e ainda assim eu levava bolo, porque as escolas ainda usavam palmatória.

 

Daí saímos da Liberdade, a violência tava muito grande, e meu pai proibiu a gente de tocar, porque eu já não queria mais ir pra escola. Então eu e meu irmão ficamos tocando escondido uns 2 ou 3 anos até a ida de Paul Simon pra o Olodum. Eu aprendi a tocar essa música e num certo domingo meu pai tinha o costume de tomar a cervejinha dele e ouvir música , eu cheguei na sala e disse: eu quero te mostrar que agora eu sei tocar percussão de verdade e toquei Obvious child.

 

Aquilo foi muito importante. Ele se emocionou muito, chorou e aquilo foi o que a gente precisava pra poder receber o apoio dele. Ele virou nosso grande herói e passou a nos ajudar com tudo. Nessa época, eu já tinha uns treze anos, foi quando eu entrei numa banda de axé e comecei a tocar na cidade com várias pessoas e mais tarde comecei a tocar com Daniela Mercury.

 

Foi trabalhando com Daniela que eu conheci Angelique Kidjo. Ela foi fazer uma participação no disco Sol da Liberdade de Daniela e o saudoso Ramiro Musotto, Márcio Victor e eu tocamos nessa gravação. Daí Angelique teve  a ideia de fazer uma trilogia com músicas do mundo, Black Ivory Soul, e o primeiro disco era com músicas do Brasil ligadas ao Benim, então ela foi direto pra Salvador. Tem até uma música, Tumba,  que ela fez com Brown e eu acabei gravando nesse disco com Márcio Victor e meses depois ela entrou em contato comigo pra eu fazer a turnê com ela.

 

Quando eu fui tocar com Angelique, eu era uma flor de Salvador, tinha todas as influências, mas também de música cubana. Com Angelique em NY, eu apliquei as coisas de Salvador que era o que ela queria. Isso foi em 2001, e eu tomei a decisão de ir pra Europa. Mas um dia antes de viajar, eu recebi convite de Enrique Iglesias e desisti de ir embora, fiquei em NY até 2018, quando me mudei para Miami.

 

Nos Estados Unidos, eu entendi que eles dão muito valor ao diferente, a algo novo e eu me transformei como músico e sou um percussionista mistureba, misturo muitos ritmos, essa coisa que existe naturalmente em Salvador.

A força de Salvador é ser uma cidade africana fora da África, a força da música da Bahia é a percussão, a gente não tem como sair disso. Os músicos que tocam outros instrumentos já sabem que têm que estudar a percussão da cidade, porque é a única liga que pode transformar esses outros instrumentos numa coisa especial pro mundo. E hoje em dia eu vejo muito mais esse entendimento dessas pessoas que tocam outros instrumentos de respeitar mais a percussão de Salvador.

Estou há 20 anos morando fora do Brasil e a gente quando sai desse universo tem uma noção da força que tem essa música de Salvador e a percussão da Bahia é impressionante. É um universo incrível que se transforma a cada momento”.

 

Gilmar Gomes, percussionista de Enrique Iglesias e criador da banda Filhos de Jorge. Entrevista concedida ao blog, em maio de 2020, em conexão virtual Salvador – Miami, onde o músico reside.